segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Boa noite,

O Luís tem toda a razão: de facto, é de aplicar o artigo 18.º da nova Lei de Bases do Desporto. Parece-me, no entanto, que a nova redacção do artigo sobre Justiça Desportiva (por contraposição à redacção do artigo 47.º da antiga lei de bases) não vem exactamente densificar o que se entenda por "matéria estritamente desportiva", uma vez que a redacção do 18.º n.º2 se manteve praticamente idêntica à do revogado 47.º n.º2, apenas tendo sido explicitamente afastada a classificação de "matéria estritamente desportiva" (e por conseguinte, insusceptível de ser objecto de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva) dos casos de xenofobia e racismo, no artigo 18.º n.º3 (por contraposição ao artigo 47.º n.º3 que apenas referia os casos de dopagem, violência e corrupção). Isto, aliás, parecia decorrer já da definição de matéria estritamente desportiva dada pelo artigo 47.º n.º2 da antiga lei de bases a contrario, ou dos princípios gerais de direito constitucional.

Se considerarmos que nem mesmo a nova lei nos permite entender completamente o conceito de "matéria estritamente desportiva", a jurisprudência pode dar alguma ajuda.

No seu sumário, um acórdão do STA de 07-06-2006 densifica o conceito de "matéria estritamente desportiva". No entender do tribunal, a definição do conceito de "matéria estritamente desportiva" deve ter na sua base a definição do conceito do que são as "leis do jogo" (e, de forma semelhante, o que são os regulamentos e as regras de organização das competições).
Transcrevendo o acórdão mencionado, "por leis do jogo deve entender-se o conjunto de regras que, relativamente a cada disciplina desportiva, têm por função definir os termos da confrontação desportiva e que se traduzem em regras técnico-desportivas que ordenam a conduta, as acções e omissões, dos desportistas nas actividades das suas modalidades e que, por isso, são de aplicação imediata no desenrolar das provas e competições desportivas."

Penso que margem para dúvidas na classificação de matéria como estritamente desportiva ou não existirá sempre, mas, sem termos mais dados do caso concreto, parece-me que esta densificação será suficiente.
Se dermos, contudo, por assente que, à semelhança do que aconteceu no caso real, estamos aqui perante um caso de corrupção, sabemos que existe um afastamento explicito da classificação de "matéria estritamente desportiva", nos termos do artigo 18.º da nova lei de bases.

Quanto à segunda questão posta pelo Luis, relativa à separação de poderes ou ao livre acesso aos tribunais, cabe, talvez, analisar o mérito da admissibilidade da apreciação exclusiva da "matéria estritamente desportiva" pelas instâncias competentes na ordem desportiva, sem caber recurso para os tribunais administrativos, por exemplo.

Citando, agora, um acórdão recente do STA de 11-02-2008, no seu sumário:
"Face à garantia constitucional do direito ao recurso contencioso de todos os actos administrativos lesivos, impõe-se uma interpretação restritiva (...), de modo a não se considerarem questões estritamente desportivas subtraídas à jurisdição do Estado, as decisões que ponham em causa direitos fundamentais, direitos indisponíveis ou bens jurídicos protegidos por outras normas jurídicas para além dos estritamente relacionados com a prática desportiva." O acórdão dá, aliás, o exemplo da “corrupção” como um dos casos em que não estamos perante matéria estritamente desportiva, o que poderá ser relevante para o nosso caso.

Assim, o acesso ao contencioso administrativo, numa lógica subjectivista, deve ter por medida a lesão do direito do particular, concretizada, por exemplo, na impugnação de actos administrativos lesivos. Para que a nova lei de bases do desporto e, nomeadamente, o seu artigo 18.º estejam conformes à Constituição e à legislação contenciosa administrativa, o entendimento do que é matéria estritamente desportiva deve ser sempre suficientemente restrito para que aos particulares seja sempre permitido recorrer de actos que lesem posições substantivas de vantagem decorrentes de "direitos fundamentais, direitos indisponíveis ou bens jurídicos protegidos por outras normas jurídicas para além dos estritamente relacionados com a prática desportiva".

Penso que, nestes termos, a noção de “matéria estritamente desportiva” não violará de forma inadmissível o princípio do livre acesso aos tribunais.

A questão das sanções a nível internacional (penso que nos estamos a referir a pressões exercidas pela FIFA no sentido de punir os membros que recorram das decisões proferidas pelas instâncias desportivas para os tribunais administrativos, por exemplo) é mais delicada e, uma vez que o post já vai longo, reservo a sua análise para outro dia :)

Cumprimentos,
Clara

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